12/13/2009

as Origens do drama


Neste post, relato na íntegra a história do meu amor por Inês, para que se perceba melhor porque tanto a procuro. Podem fazer download, copy-paste, passar de mão em mão e até enviar-me pistas sobre o seu paradeiro.

Inês era uma virtuosa pianista. E escrevo "era" porque… um problema com o álcool não só lhe arruinou os nervos, como lhe entaramelou o talento e sobretudo… sobretudo, lhe descoordenava os dedos: falhava teclas, a linda Inês.

Desde há muito que a conhecia, mas sempre considerara certas manifestações de excentricidade como marcas de um génio criador! Só me apercebi verdadeiramente da dimensão do drama para o qual deslizara a Inês, quando num dia, por mera casualidade, me surgiu em Tomar, por ocasião dum Festival Medieval e nela tropecei, enquanto actuava entre jograis, artífices e mercadores.

Descobri-la tão só, carente, emocionalmente devastada, foi do menos… como não me aproveitar? Pelo contrário, foi na reflexão que não tive, que me perdi e fui atrás dela!

Fomos beber, não apenas porque se organizam festivais no estio também para isso, mas porque Inês bebia bem e pouco não lhe bastava! Nada de mais, de resto (isto de beber copos), entre dois amigos reencontrados, lembrando histórias antigas, comentando percursos e … coisa curiosa: traçando planos para o futuro! Desde logo Inês se entusiasmou com a minha obra lírica nascida e eu desde cedo aceitei com bastante deleite que ela me desse música, significando com isso que me musicasse os poemas... Selámos o princípio da nossa colaboração artística com um shake-hands e outra Macieira.

E depois… Bom, depois para não dar azar, pedimos nova rodada e assim seguimos pela tarde fora, macieira atrás de macieira, porque três era a conta que Deus fez, quatro para brindar ao Teatro e por diante a despejar matemáticas de mudas semicolcheias e versos falhados…

Estariam destinados a falhar? Sem tempo para ressacas emocionais, subimos pelo poente ao Castelo dos Templários e lá no topo da colina, por entre as ameias, ao longo das muralhas, erguidas ao Tempo, era impossível que não me viessem à cabeça, mesmo bêbada como estava, miragens de guerreiros árabes chocando contra cavaleiros cristãos. Que viva imaginação, não..? Mas as macieiras tinham sido algumas...

Estávamos todavia sós e o cenário ajudava, mas a prova irrefutável do meu fraco lirismo foi que nos pusémos a jogar não libidinosos duelos, mas Xadrez! Como desencantou ela o tabuleiro? Nunca me quis dizer. Mas foi uma partida de Xadrez que pautou a escrita dos primeiros versos para a Inês que quero ainda ter por rainha do meu Castro!

Eu estava com as pretas – e jogava, portanto, pelos mouros – tentando prosseguir no tabuleiro as lúbricas investidas em que teclara ao longo da tarde…

Por isso escrevi:

Do Levante vem moreno,
Aquilino e de turbante…
Esse arábico veneno.


Aquilo era mais do que um jogo! Parecia uma guerra de verdade com exércitos avançando, geopolítica e baixa diplomacia. A situação era complexa e Inês, a Inês que ainda não se sabia de Castro, pôs-se a pensar, a pensar… pseria na jogada seguinte?

Estávamos num impasse do jogo e do romance, mas de coração acelerado e espírito ébrio, prossegui eu o poema:

Oh sedutora e sediciosa amazona…
Mostrarás tu à Península agachada,
Que a coragem vem de dentro, vem à tona,
Nos teus olhos visionários de fadada?


E o que me responde Inês? “Roque” foi a sua resposta e fez aquela jogada do Xadrez na qual o rei avança duas casas para o lado por troca com a torre, assumindo uma forte posição defensiva.

Ora Roque em inglês diz-se Castling. Castling!
Daí ter escrito “Pois à Menina do Castling” - que é como quem diz:

À Menina do Castelo
Sua égua presto selo.
Dou-lhe a espada, a malha d’aço,
Mais o escudo brasonado para o braço.


E de elmo emplumado a pena branca,
Tão airosa com o olhar conquistador,
A intrépida mocetona lá desanca
Sobre o mouro, o infiel, o Almançor.


O Almançor foi um famoso guerreiro árabe medieval que lançou o pânico na Península cristã… Mas no fim… Tanto na Península, como no poema e na partida, as pretas jogaram… e as pretas perderam. Como costumam dizer, porém, azar ao jogo, sorte no amor. Éramos dois mamíferos em pleno Estio e já bem embalados de Macieira, nos enfrascámos de mãos dadas, fazendo o que dois adultos responsavelmente bêbados por vezes fazem.

Claro! Claro que nos sentimos constrangidos. Era necessário pousar um certo recato. Ela, então, corava em prantos, arrependidíssima, como estava!

“Não, isto não pode ser!” – dizia-me – onde já se viu uma colaboração artística acabar na cama? “

“Bom… realmente, ora deixa cá ver, só com o pianista Mário Laginha e a cantora Maria João, os escritores Simone de Beuavoir e Jean Paul Sartre, os pintores Diego Rivera e Frida khalo, os ladrões Bonnie and Clyde, o Zé Pedro dos Xutos e a Xana dos Rádio Macau… Queres que continue a lista? Estou de ressaca e já me dói a cabeça”

“Mas Não! – replicava a Inês – Tu não me conheces, não sabes quem sou. Eu não sou a tua terra prometida das vinhas e do mel, poeta parvo! Nada florirá no fel em que me tornei… e eu… eu apenas posso destruir quem se aproximar demasiado de mim! Pára! Pára agora que apenas te posso arrastar para os abismos alcoolizados da macieira na qual mergulhei. Afasta-te! Afasta-te enquanto é tempo poeta parvo!

“Não digas asneiras, Inês” – pedia-lhe eu.

“Não digas asneiras tu” – insistia a Inês – “A tua Inês de Castro não existe. Não existirá jamais! Não há aqui nenhuma Inês de Castro! Tudo não passa duma figura literária que criaste na tua cabeça. Diante de ti tens apenas a Inês do Cacho! Será que não te cheira?”

Ela bem me avisou mas tonto de amor, sob efeito ainda da muita Macieira tragada, tornei-me também lírico e contrapus:

“Apenas tenho olhos para os teu encantos e mesmo se de nesga miro essas nuvens negras acasteladas em teu redor, não serão tão absurdos presságios que me farão render. Não! Nunca! Não! Jamais te largarei de vista!”

Era bom o nível de argumentação, mas a senhora nitidamente fazia género e ia a jogo:

“Vá afasta-te” – como quem diz: “de que, estás à espera? Beija-me!”

“Isto não vai dar certo” – no que deveria ser traduzido por: “pega-me pela mão”

E aquela não era situação que devesse ser ultrapassada simplesmente a goles de Macieira! Sentindo que era necessário recorrer à artilharia pesada, fiz birra, virei-lhe as costas e puxei pela cabeça, para poder responder à minha linda Inês do seguinte modo:


O Futuro era agora

És, querida, o meu Breton,

Mais fogosa que baton

Rubro, rouge e escarlate,

Desses que tu nunca usas

Pra imitar plásticas musas

Que pousando, julgam arte,

As vaidades alabastrinas

Com que entopem as latrinas.

São fogo-fátuo e fraco néon

De revista “cor-de-rosa,”

Com que publicista ousa

A nós todos impor tom.

Mas hás tu!

És tu a revolução surrealista,

És o corte epistemológico,

Digital e analógico,

Iconoclasta e simbolista!

Mais concreta que o betão,

Só a utópica ilusão

Com que pregam os teus olhos,

Tua fé e os meus sonhos:

São apóstolos risonhos

A cujos pés se estala o mar.

E a maré que vindo, vem enchendo,

E nos invade as fortalezas construídas

Por aquela areia granulada, muito fina,

Com que erguemos pela manhã

Em pueril descontracção,

As muralhas destinadas

A barrar o mar, as leis da física,

Mais os astros em rotação.

E depois..? Bom… havia alguns restos de Macieira dentro da garrafa e fizemos o que dois adultos razoavelmente ressacados por vezes também fazem na manhã seguinte.

Todavia… O meu instinto de sobrevivência não estava totalmente embriagado. Bem sabia que esta Inês era um sarilho andante... um desconcerto sem emenda, fadada como estava, a virar a minha vida do avesso. Não por lirismo escrevera “És tu! És tu a revolução surrealista”.


Mas eu tinha caído, não é? Finalmente encontrara uma rapariga ainda mais… como dizer… ainda mais surrealista que eu! Tinha caído pela promessa de encantos e de sombras: Nocturnas de Chopin e versos de Sophia de Mello Breyner por serões sensualistas, servidos de Macieira… Seria lindo: um amor e uma cabana... lindo, mas não para o fígado.


Por isso, um resto de lucidez espicaçou-me a não olvidar a minha elevada responsabilidade lírica. Sim, porque eu poeta de maus versos, julgava-os bons! suficiente válidos para serem legados às novas e vindouras gerações. Portanto, porque era a Macieira, logo tratei no início do meu namoro com Inês, escrever o meu Testamento:

Auto-retrato do artista enquanto jovem

Sei que fui belíssimo.

Nas minhas fraquezas existi.

Fui um grego veríssimo,

Um fresco de Boticelli,

Um suspiro de Camões,

Uma vontade em ser.

Concentrei numa todas as paixões,

Mordi a maçã, caí no abismo

E solavei a terra como sismo.

Revirei, revolvi, tudo aos trambolhões!

Sobretudo fui, tentei ser,

Ousei sonhar alto sem desfalecer,

Sem perder a fé ou o ânimo,

Sem medos ou remorsos a roer,

Pois sei que fui belíssimo,

Fui um Ícaro nas asas dum amor,

Todo ele martírio e dor.

Fui um grego veríssimo

Nas fraquezas e nas forças.

Foram algumas.

Fui!


Apesar de tudo, os piores presságios não se confirmaram e durante anos pudemos construir uma relação sólida e também um pouco mais sóbria! Tínhamos um amor e uma cabana. Sobretudo um amor que não carunchava!

Com o tempo e certos ajustamentos fomos ganhando rotinas e cumplicidades, mas também bastante resistência à Macieira. Éramos inseparáveis, almas gémeas na cama, na cabana e na carreira! Pois acabámos por juntar forças e puxar um esquema: Inês tocava órgão e eu tirava fotos em festas de casamento. Também lançava cartas de Tarot e fazia outros truques de magia com a minha bela assistente. Com alguma perícia, ao fim de alguns copos-de-água, já nos abastecíamos de comes e bebes para o resto da semana e com as poucas despesas que fazíamos, com excepção das aspirinas... Não seria o Céu, mas também não estava mal de todo para um par de artistas de rua a actuar indoors… E tínhamos, sobretudo, bastante tempo livre para nos dedicar ao culto das belas artes... e das belas Macieiras!

Mas numa manhã de Maio, o carteiro - tal como no filme - tocou duas vezes. O tão ambicionado Juízo foi soprado à Inês na forma de carta: A Virtuosa pianista era chamada a prestar provas. Provas da sua reabilitação!

Metodicamente, depois de se recompor do choque emocional, com duas Macieiras e algum alarido de rajada, Inês arregaçou as mangas, fechou a garrafa e foi ressacar. Só algum tempo depois começou os ensaios, tocando dia e noite o bendito concerto a ser testado. Não tardou que tivesse a música na ponta dos dedos. Parecia perfeito… Sei lá… eu era melado, mas não tão melómano assim! Mas ela insistia e teimava que lhe falhava o dedo mindinho num dó em semi-fusa em certa passagem mais traiçoeira…

Num certo dia de ensaio, dedicou-se em exclusivo àquele trecho. Foram horas a fio, tocando o trecho como disco riscado, sempre encravando no mesmo risco de pó, pois uma e outra vez, se queicxava do mesmo a Inês: “falha-me o dedo mindinho no dó em semi-fusa, falha-me o dedo mindinho no dó em semi-fusa”. Bebeu uns copos de Macieira a ver se acalmava os nervos. Qual quê! Começaram os dedos a falhar mais teclas. E ela naquilo sem parar! Até que martelou enfim simplesmente o piano…

Eu mal respirava encovado sobre mim num canto à espera… que começasse a injuriar-me com todo o vocabulário feminista disponível:

“A culpa é toda tua, toda tua! Sufocas e suprimes-me toda a sensibilidade! “

E eu nada.

“Ficas pelos cantos a escrever, que é o que melhor sabes fazer. Ou antes, aquilo que gostarias tu de saber fazer porque nada escreves que se aproveite. Não escreves um peido, poeta parvo! Um poeta que rima… Ora onde é que já se leu, nos dias de hoje, poesia a rimar..? Por amor de Deus, não me faças rir, que mais teclas falho! E eu ainda tenho que aturar um machista! Sim, um machista! Dás de mamar a tua fraca fantasia com a minha demência, minha decadência e desventura!

Sim! Não faças essa cara! Vocês, homens… vocês homens são todos iguais! Todos iguais! A diferença entre ti e os outros é que, para além de contabilizares as que gajas que papas, também deitas contas aos versos que escreves…”

Ela estava nitidamente perturbada, agitava-se muito e espumava já da boca quando se lançou a mim. Na minha inocência ainda julguei que ia ser abraçado. Era bom era! Abraçou-me foi o pescoço! cerrando os seus longuíssimos e endurecidos dedos de tanto tocar piano.

“A culpa é toda tua, toda tua!”

Estava possessa e esmagava-me o peito com seus joelhos enquanto as mãos me estrangulavam o pescoço. “ A culpa é toda tua! Toda tua!” a minha nuca batia contra o soalho, “a culpa é toda tua!” e os meus olhos, turvados, já viam tudo a dissipar-se quando, de repente, a Inês se levantou de estalo. Ergueu-se muito alta, muito hirta e mirando os dedos, mirando-me a mim, tornando o olhar para os seus dedos e vendo-me estendido no chão, exclamou, revirando os olhos enquanto me desfalecia em cima o trágico suspiro: “escreve escriba, escravo da escrita, escreve!”

Velando incansável à sua cabeceira, lívido vivi o longo knock out de Inês, que sossegou durante 2 dias. Quando acordou, deu um pinote, pulou para o chão e exclamou jubilosa: “bom dia, alegria!” – acrescentando com líbido: “vai servindo duas Macieiras, que eu abro a lata de atum para o nosso pequeno-almoço.”

E se esta nossa história era até então macieira, mel ou drama... descambou, com este episódio, de vez para o drama!

A Inês abria lampeira a lata de atum, com aquelas mãos que ainda lhe tremiam da fraqueza e da comoção, com seus dedos descoordenados, quando – ai terrível maldição! “Aaaaaaaaaaaaah!”


Ao escutar aquele grito - “Aaaaaaaaaaaaaaah!” – larguei tudo, larguei até a Macieira e corri para a cozinha, deparando aterrorizado e sem pinga de sangue, com o dedo mindinho… o dedo mindinho da Inês, aquele que teimava em falhar o dó em semi-fusa, completamente ensanguentado pela abertura mal medida duma maldita lata de atum! Oh Cristo! Tinha-se cortado a Inês.

E decerto porque éramos duas almas perdidas, sem dúvida porque estivemos na presença de sangue, talvez porque a gata miasse e a Lua estivesse Cheia… quando eu, ao ver retalhado o dedo mindinho da Inês, exclamei aos 4 cantos da cozinha “Diabos me levem! Diabos me levem se não te salvo do vício da bebida, linda Inês!”; sucedeu que logo de seguida, o Mafarrico em pessoa, Ele mesmo, resolveu dar um ar da sua graça, já de copo de Macieira na mão!


Diante do Demónio, ficámos escancarados de boca aberta, mais parecendo os três pastorinhos diante da Nossa Senhora de Fátima: Eu, a Inês e a sua gata, a famosa “gata Sinatra”.

A “Sinatra” sei eu bem que viu o Capeta pois de pêlo eriçado raspou-se enquanto o Diabo esfregava um olho… A Inês viu e escutou a Coisa-ruim porque me disse: “olha que giro… Eu já não tinha uma visão alcoólica induzida ora… deixa ver… Ai! E fala e tudo! Esta agora! Está-me a pedir duas pedras de gelo…!”

Riu-se a Inês e partiu de abalada e em urgência para o Hospital São José onde lhe coseram – exagerou depois um pouco ela - 36 pontos no seu dedo mindinho…

E eu… bom, eu fiz o papel duma espécie de Irmã Lúcia invertida, escutando a pregação que Satã tinha a fazer aos homens e pondo-me à conversa com ele.

Belzebu não tinha nada de concreto para vos dizer, mas a mim disse-me ele muito. Primeiro, explicou-me que dado que eu nunca iria libertar a Inês do vício do álcool, viera buscar-me – para me poupar muitas maçadas e mais Macieiras. Todavia, fingindo comover-se, confidenciou-me que sendo eu um jovem tão talentoso, era de todo um desperdício levar-me já... deveria suspirar de alívio?

Eu desconfiava, claro! porque se insondáveis são os desígnios de Deus, necessariamente manhosos são os meios do Mafarrico… Como lhe fizesse ver isso mesmo, atalhou na bajulação, passou à segunda Macieira e propôs-me uma aposta.

“Uma aposta!” – Exclamei eu. “Para fazer uma aposta mais vale vender-te a alma não achas?”

Não, Satanás não estava de acordo. O Bode andava nas lonas e era agora um pobre Diabo. Um cibernauta – contava-me ele - através da Internet, fizera um gigantesco desfalque nas contas secretas que o Príncipe das Trevas tinha na Suíça e, pior que tudo, sucedera isso quando certos acordos com a Banca tinham sido firmados... “É triste dizê-lo – chorava-me – mas nos dias que correm, até o grande Lúcifer é um cordeirinho nas mãos da banca capitalista.”

Vivíamos tempos de crise. Tampouco o Diabo podia transformar pedras em pepitas ou fazer o milagre da multiplicação dos euros porque havia um pacto de estabilidade a cumprir. Sim, um pacto de estabilidade a cumprir! Ou vocês acham que foram os burocratas da União Europeia a cozinhar este purgatório..? Abram os olhos, meus amigos!

O Diabo ainda tentou o narcotráfico, mas nestes tempos tão agitados… as máfias russas têm mais poder de fogo e maior influência que o maquiavélico Mefisto.

“Uma tristeza” – Concluía o Arcanjo da Luz. “E tive de dedicar-me a negócios estúpidos e realmente marginais como vender Enciclopédias, carros em segunda mão e até “francesinhas”. Tinha, por isso, Lúcifer uma cadeia de fast-food baseada em “francesinhas”… “As francesinhas do Inferno com extra-picante!” – o que não deixava de ser diabólico: impingir às gentes inocentes comida com alto teor de gordura.

“Assim, como assim, sendo tu um talento por explorar – continuou ele – proponho-te uma aposta que nos pode render muito… muito, sem dúvida.” – e o Diabo esfregava as mãos de contente… – “Se tu escreveres todos os dias, até ao Solstício de Verão um poema para a Inês… Eu liberto-a do vício do álcool, publico-te a obra lírica que será um extraordinário sucesso literário, ganho milhões, ficas famoso e todos ficamos felizes… Que dizes filhinho..?”

“E se eu perder… “- retorqui…

“Se tu perderes deixo a Inês entregue a si mesma, que é como quem diz, à sua Macieira. Reúno o que possa dos teus versos e engendro-te um espectacular suicídio, pois toda a gente sabe que depois de morto o artista rende mais.”

“Mas assim nunca perdes Mefistófeles!”

“Por alguma razão ainda me chamam Diabo…”

Não pensem que eu não tinha confiança na capacidade do meu amor para salvar A Inês do vício do álcool… Mas publicar… Neste país, publicar poesia só com um grande padrinho ou pactuando com o Manhoso! Ora, como o meu padrinho é um bate-chapas ali na Av. Gago Coutinho… Resolvi apostar com o Mefistófeles. Tudo selado com boa Macieira, claro.


Então comecei a escrever. Escrevia para a Inês ou para o Diabo? Para minha vaidade ou para a sua salvação? Ainda hoje não sei! Sei que escrevia, tinha de escrever todos os dias. E não podia ser um qualquer poema rasca como:

"A Inês do meu castelo

Põe-me a ver tudo Belo,

Desde o Sol que é Amarelo

Até este ovo que eu estrelo."

Convém confessar que a nossa dieta era constituída algo à base de ovos, atum... e muita Macieira.

Não, não podia escrever coisas ranhosas que o Diabo não era parvo nenhum e queria ganhar dinheiro. Desta forma, para avaliar a qualidade das minhas criações, tratou de reunir o Clube de Poetas Mortos (líricos como eu que já tinham, entretanto, batido a bota). Não só tinha de escrever todos os dias um poema, como tinha também de ser uma espécie de obra-prima… De arrasar com os nervos de qualquer um, quanto mais os meus, que já eram tão delicados!

Eu todavia estava animado por um ideal: Salvar a Inês do vício do álcool, resgatando para o mundo essa virtuosa pianista que caíra na esparrela das Macieiras. E sabem que mais? Estava a dar baile ao Diabo! Escrevia desde os seus olhos verdes, aos eléctrico que apanhava a Inês para ir para casa…

0 28 da Carris

Há um eléctrico desejo

Percorrendo as colinas,
Dissipando as neblinas
Sobre o pardo, triste Tejo.

No vrum vrum da confusão
Vai de mansinho rolando,
Nos carris vai-se esquivando
Ao tropel do buzinão.

Pois lá dentro há uma paz
Envolvendo o nosso herói
- O peito já não lhe doi...
Conquistou-a, foi audaz!

Desde a Baixa até à Estrela
Com paragem no Castelo,
Em tudo vislumbra o Belo,
Pois não tarda, está a vê-la.

Dava ou não baile ao Diabo? E Mefistófeles, vendo que dançava à medida que o solstício se aproximava... maquinou um esquema: para não perder a aposta, engendrou-me uma acusação de plágio. Plágio... que descaramento!


Eu só usava originais! Se ainda fosse acusado de mau gosto ou mediocridade aceitava, que o poema em questão não era grande espingarda… Foi construído a partir duma passagem d' O Vermelho e o Negro que estava lendo... Agora plágio! Que grande lata! Simplesmente me inspirava...


Porém, a Verdade era o que menos interessava ao Mafarrico que, para além de mau, também não tinha bom perder


Apresentou queixa Mefistófeles ao Tribunal dos Poetas Mortos mas, ao contrário da Justiça portuguesa, o processo rolou com grande rapidez. Num ápice, enquanto o Diabo esfregava um olho, fui como que "teletransportado" e, sem saber muito bem como, vi-me numa sala de audiências com o juiz diante de mim:


E era ele senão… O Fernando Pessoa himself, encontrando-se muito bem conservado em álcool tal como já o fora em vida! A meu lado estava o Diabo, e atrás deste os seus advogados que eram – acreditem! - às centenas, aos milhões, às toneladas! Lírico como sempre fui, esquecera-me que às tantas… às tantas, 9 em cada 10 advogados iam direitinhos para o Inferno!

E olhem que eram mais do que as mães! Todos em linha, pesquisando processos, consultando códices, lendo legislação à procura dum precedente, duma falha qualquer, de um esquivo argumento jurídico com que pudessem condenar. Até deitavam fumo pelas orelhas, todos em fila, fato e gravata, quilos de gel no cabelo todo puxado para trás… que horror! Era mais intenso o cheiro do gel do que o cheiro a enxofre exalado pelo Diabo.

Ainda assim, não me ralei. No fim de contas, a razão estava do meu lado e o Fernando Pessoa à minha frente… como é que eu podia perder?

Só mesmo com jogadas sujas.


Modéstia à parte fiz uma defesa brilhante: a Macieira ajudou! Tão rebuscada foi - a Macieira -que até invoquei o Camilo na minha argumentação ao Juíz, afirmando que plágio era o Amor de Perdição, cópia barata do Romeu e Julieta, pois tanto num, como no outro, dois jovens amam-se apesar das desavenças familiares e do triangulo amoroso artificialmente criado por um primo parvalhão... No fim... No fim morria tudo...

Foi muita a minha conversa, mas maiores os pecados de Satã. Mas seria de estranhar? Se o Diabo não pecasse… quem pecaria? E na verdade, pecou o Mafarrico duas vezes: primeiro subornou o juiz e depois… foi de uma atroz avareza!

Não que tivesse pago pouco por debaixo da mesa ao Fernando Pessoa: as "francesinhas do Inferno", afinal pareciam ter saída! O problema, ou o pecado – se preferirem -, foi ter deixado de fora os seus heterónimos - dele Pessoa. Por fortuna era Quarto Crescente, a Lua ia alta e a personalidade dominante do momento era o Álvaro de Campos.

E o Álvaro de Campos, que não fora subornado e não podia ir beber umas genebras para o Martinho da Arcada, querendo pregar uma partida ao Diabo, resolveu fazê-lo a minhas expensas, não porque me enviasse a conta, mas porque decidiu.


Ajuizou ele, Álvaro de Campos, para que não sobejassem dúvidas, que eu, poeta lírico, para o ser deveras, teria de organizar a declaração poética de amor da minha geração. Se o fizesse, se fosse realmente um Poeta com P grande, ganharia a aposta, libertando a Inês do vício da bebida. Era pegar ou largar. E eu peguei num copo de Macieira!


O resto… bem, o resto fará eventualmente parte da história literária deste país.

Fui para casa a deitar contas à vida, matutando, reflectindo e tentando sacar um coelho qualquer da minha cartola. Não era fácil: "organizar a declaração poética de amor da minha Geração"! E como tinha em mãos um problema de escala, excluí, desde logo, o bouquet de flores, o "postal cantado" ou o ursinho de peluche... Não! Tinha de ser em grande e não apenas o gesto simbólico comprado em pechincha como prenda qualquer bem escolhida...

Era espinhoso, mas eu tinha uma vantagem: tal como a Joana d'Arque, também eu escutava algumas vozes dentro da minha cabeça e uma delas sugeriu uma abordagem mais matemática da tarefa em mãos... E foi pela estatística que espevitei!

Como assim..? Assim sendo: E se eu ao invés de fazer uma tatuagem com "amo-te Inês", fizesse um graffitti? E se invés do "amo-te Inês" escrevesse a quadra?


"Quisera eu ser o Pedro

Desta Inês tão galante,

Do me Castro seres rainha,

Ser teu cavaleiro andante"


E se em vez duma quadra, enchesse o país? Bom... um país seria complicado, mas forrar a faculdade onde fingíamos estudar.... talvez não fosse assim tão complexo! Como tinha uma péssima caligrafia, logo desisti do graffiti. Mas não era tudo uma questão de escala? Pois imprimi os versos com times new roman a 200 de tamanho e montei, como se fora um puzzle, 100 painéis de 1 por 1,5 metros.

Pedi as devidas autorizações, reuni o grupo de amigos do costume e colei tudo durante a noite sem que suspeitassem faculdade ou Inês... No dia seguinte, se não fosse a poesia, seria a matemática a produzir o efeito, senão reparem: numa escola onde estudavam cerca de 3000 raparigas, bastava que uma em cada cem se chamasse Inês para termos logo 30 possíveis destinatárias da mensagem amorosa... E em turma em que houvesse uma Inês, necessariamente, pela estatística dos nomes, teriam de haver dois ou três Pedros...

A curiosidade matou o gato? Contava com isso: Para "qual Inês" e "de que Pedro", seriam as incógnitas a levantar na equação amorosa calculada. E que equação! Mais do que na poesia, tinha eu fé na patologia! Por isso fiz não 1 mas 100 painéis, pois 1 seria bonito, mas 100 foram obsessivos!

E assim foi: absolutamente lindo! Quando na manhã seguinte 5000 alminhas transpuseram os portões da faculdade, a escola já não era a deles, mas antes um imenso altar lírico no qual incensara Inês. E ela?Inês chegou pelas 3 da tarde para tomar café na esplanada da escola e caiu de quatro. Naquele pequeno Cosmos, durante um ínterim, apenas houve um Pedro que queria ter uma Inês por rainha do seu castro... Ainda assim não se fiavam as gentes (tal é o cepticismo dos dias de hoje), crendo uma elevada percentagem de que tudo não passava duma campanha publicitária, peça treatral, lista para aAssociação de Estudanters... enfim! Mas com a devida chancela do Guru... deixou de haver (sequer!) termo de discussão possível: venci o Diabo, resgatei a Inês do vício do álcool e tive, nessa, a melhor noite de sexo da minha vida. Esforçara-me, não foi? Também tinha direito!

Tudo pareceia bem, mas ainda faltava escrever o fim da história e este conta-se já em duas palavras.


Liberta do alcoolismo, Inês, virtuosa pianista, deixou de falhar teclas e foi resgatada para música, mas desfinado fiquei eu.

É certo: vi a minha poesia ser publicada… Mas houve um problema técnico. Ressabiado por ter perdido a aposta, o Diabo resolveu vingar-se. E podia fazê-lo, pois as "francesinhas do Inferno" tinham-no catapultado para a fortuna fácil e como versos vendidos já não passavam de trocos... trocou-me as voltas!

Publicou efectivamente os meus poemas, pois até Mefistófeles tem o seu código de honra. O problema foi que a aposta não especificava a localização geográfica da publicação e como um bom cabrão que era, o Mafarrico publicou os meus poemas escritos na língua de Camões... na terra dos Vikings! Reparem que não se tratava, sequer, daquelas publicações bilingues, tipo português-islandês. Não! O Diabo descaradamente editou os meus versos na Islândia sem tradução alguma.

Uma miséria! Nem sequer pude assistir ao lançamento da minha obra por não ter como pagar a passagem aérea, pois continuava sem um chavo no bolso e completamente ignorado pelos círculos literários do país - tanto no nosso, como na vikinglândia! Um enorme "sucesso", portanto: o embaixador português na terra do gelo comprou um livrito por frete e ofereceu dois no Natal.

Pior! Tinha ficado com os nervos esfrangalhados. Não era fora fácil, sabem? Lutar contra o Diabo, aturar as crises nervosas da Inês e ainda ter de escrever obras-primas todos os dias durante meses a fio, acabando por fazer a declaração de amor da minha geração… Ufa! Estava de rastos.

No fim, secara, esgravatando e nada! A inspiração tinha-se ido e já nada mais escrevia, senão arabescos. Bebi! Bebia muito e sem destino, até que ganhei eu um problema com o álcool, pois não era então suficientemente adulto para compreender os processos segundo os quais me tornara num idiota insuportável, justapondo amargura e narcisismo, tudo embrulhado numa obsessão fatalista pelos efémeros 15 minutos da fama fácil.

E de tal forma caí fundo, pela garrafa dentro, que à minha linda Inês, virtuosa pianista, outra partitura não lhe restou senão dar-me um pontapé nos tomates [literal] e chutar-me para fora da sua vida… Até hoje. Até sempre?



Rui Faustino
o Pedro que procura Inês

3 comentários:

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