Dizem que uma desgraça nunca vem só e dizem-no bem. Seria decerto mais comum despedir-se a mulher depois de perder o emprego, mas sucedeu comigo o inverso. Não nego que me desleixara, mas não mais do que o habitual! Verdadeiramente negligente foi o percurso do país, sempre de crise em crise, aos tombos como um bêbado, volvendo-se os tempos duros e tornando-me numa das várias vítimas do rigoroso Outono económico. Quando me deram a notícia, o meu coração gelou e julguei-me no fim: a ruína esteve a um palmo.
O meu trabalho era a minha vida, o que não deixava de ser bastante eloquente sobre a mesma. Como tantos, não elegera a profissão, antes fora escolhido por esta. Não possuía vocação, tampouco tinha grande serventia para a marcha da civilização do mundo e apenas alcançara um discreto estatuto na pirâmide social, não sendo invejado por quase ninguém. Não posso dizer que odiasse o meu emprego, simplesmente não via sentido nele. Era Guarda-livros e sê-lo na era digital seria, decerto, bastante idiota, mas aquele emprego pagava as contas no fim do mês e por isso mesmo, por ser coisa nenhuma com horários definidos e uma remuneração mensal, era toda a minha vida. Mesmo isso acabou esfumado num ápice, num mesquinho estalar de dedos e num “ponha-se a andar daqui para fora”.
Estrebuchei. Danifiquei discretamente os automóveis dos meus superiores hierárquicos, injuriei lascivamente as leitoras e embebedei-me como um porco. Vomitei para cima do chefe e não me foi fácil: tive de meter os dedos pela guela adentro para desembuchar o que realmente pensava sobre ele. Fodeu-se! Que podia fazer? Despedir-me? Eu ia já a caminho da porta com a vingança possível debaixo do braço: todos os livros de astrologia, esoterismo e mistérios sagrados, que conseguira roubar com a cumplicidade do segurança.
4 comentários:
Ainda não consegui definir onde está aqui a linha que divide a realidade da ficção...e sinceramente, isso incomoda-me.
não vejo porque há-de incomodar...
porque não percebo, o que não se percebe incomoda!
A maior parte da literatura, sobretudo na má literatura como aquela que é apresentada neste blog, baseia-se na metaforização da vida.
Nada aqui é diferente. A diferença reside no facto de que, ao contrário de quase toda a literatura - sobretudo da boa literatura -, este mau escritor vai vivendo no AQUI e no AGORA, a realidade que vai descrevendo em factos que sucederam não há 10, 20 anos, mas há 10, 20 dias.
De qualquer modo, o meu interesse exclusivo é encontrar os caminhos para o coração da InÊs.
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